Teixeira estava perdido em pensamentos distantes, numa conversa consigo próprio, daquelas em que ninguém entra mesmo se convidado, numa sequência cuja lógica só ele podia descortinar. O comboio tinha partido de Cascais rumo a Lisboa numa viagem curta, não mais de dez paragens. Seria um dia como outro qualquer; acordou estremunhado, tomou banho automaticamente e depois, sem pressas, engoliu um croissant que sobrara da véspera. O autocarro deixou-o à porta da estação que àquela hora parecia abandonada.
O mar acompanhava-o com reflexos de um sol ensonado na preguiça de quem sabe ter ainda toda a manhã para se erguer. Nunca se cansava deste mar, um trajecto para eleitos, sentia-se feliz por poder presenciar um amanhecer assim. As gaivotas, essas, começavam agora a partir na rota das traineiras que andavam há horas na faina.
A travagem foi mais brusca do que o habitual, sentiu-se impulsionado para a frente num movimento que as pernas contrariaram de pronto. Olhou para fora e viu as caras do costume, sem expressão, com marcas de uma noite interrompida na pressa de horários que se devem cumprir. As portas abriram-se ao tsunami que de imediato galgou cadeiras, coxias e todo o espaço que sobrava.
De início não o reconheceu, mas quando ele o olhou de frente ficou com aquela estranha sensação de um “déjà vu”. O estranho fixou nele o olhar e sem hesitação disparou:
Estranho: conhecemo-nos?
Teixeira: bem... a sua cara não me é estranha.
Estranho: nem a sua, nem a sua! Confesso que não sei bem de onde.
Teixeira: será de Cascais? Eu vivo lá há mais de vinte anos.
Estranho: eu também, mesmo em frente ao Farol da Guia...
Teixeira: não pode ser, vejo o Farol da sala de jantar, mas continuo com uma branca...
Estranho: espere, não costuma correr na ciclo-via que vai até ao Guincho?
Teixeira: todos os sábados de manhã!
Estranho: está explicado, eu também! Já nos devemos ter cruzado dezenas de vezes.
Teixeira: (sorri) certamente! Já agora apresento-me, Luís (e estende-lhe a mão).
Estranho: hoje estamos no dia das coincidências. Eu também me chamo Luís!
Teixeira: só faltava dizer que a sua mulher se chamava Teresa (e ri-se).
Estranho: (muda o semblante)... brinca, a sua mulher chama-se Teresa?
Teixeira: desde que nasceu.
Estranho: meu amigo, a minha também!
Teixeira: só faltava serem irmãs gémeas!
(riem-se)
Estranho: mais um dia de trabalho...
Teixeira: mas o fim-de-semana está próximo... hoje tenho de validar umas facturas...
Estranho: curioso, eu também. Não me diga que trabalha na área financeira?
Teixeira: trabalho num banco, no BPI, o banco do Mourinho... mas no meu o treinador é bem lixado!
Estranho: caramba! Eu também trabalho no BPI! Aposto que é daí que nos conhecemos! Hoje tenho de jogar no Euro Milhões!
Teixeira: se você não ganhar, ganho eu. Qual é a sua área, Luís?
Estranho: estou no crédito... sou analista.
Teixeira: ...no crédito? Eu... mas afinal há quanto tempo está no BPI?
Estranho: há 12 anos, mas só estou no crédito há 3 meses!
Teixeira: .... ok! ok! Já percebi, está a gozar comigo... eu mudei para o crédito há 3 meses, são coincidências a mais...
Estranho: pois são, mas eu tenho dado as respostas, por isso se está aqui alguém a gozar com o outro será você! (levantando o tom de voz)
Teixeira:. ... pois, e a minha avó ainda está viva...
Estranho: desculpe, acho que não faz sentido continuarmos a falar, aliás, não faz sentido eu estar aqui sentado ao pé de si; tenha um bom-dia de trabalho...
Teixeira: para você também, Luís... será esse o seu nome?
O estranho levantou-se lançando para trás um olhar de desprezo. Teixeira acompanhou-o com o olhar até o ver mudar de carruagem. Seria essa a memória com que ficaria; alguém que por ali passou para o gozar, mas a mando de quem? Olhou à volta e viu, por entre as cabeças junto à porta da carruagem, a cabeleira inconfundível de Manuela. Não era bela, mas o cabelo loiro bem esticado fazia dela uma mulher que não passava despercebida. Ali não seria diferente; os homens que a rodeavam miravam-na de quando em quando, disfarçando o olhar quando cruzado com o de outro. Teixeira ficou-se, não disse nada.
O vexame persegui-o até à secretária. “Mas por que raio me fez ela aquilo?”, este pensamento não lhe saía da cabeça. Preparava-se para tirar o casaco quando alguém lhe disse:
Ela: Bom-dia! Hoje viemos muito pensativos!
Ele: Olá! Também te vi no comboio mas como ias junto à porta nem te disse nada.
Ela: pois é, tu tens a vantagem de quem entra primeiro e tem sempre lugar sentado.
Ele: é verdade! Mas tem os seus inconvenientes também, tive de aturar um parvo que me quis gozar.
Ela: a sério?
Ele: é verdade... sabes quem era o homem que vinha a falar comigo?
Ela: homem? Mas tu vinhas rodeado de mulheres, reparei nisso porque estavam todas a sorrir...
Ele: a sorrir? A propósito de quê?
Ela: de ti! E tu não és um homem propriamente belo... (e deixou escapar um sorriso)
Ele: de mim?!
Ela: sim... vinhas a falar sozinho!
Espelho meu, haverá mais alguém para além do... eu?