terça-feira, dezembro 28, 2004

Liberdade

Pegou no cinzel e começou a esculpi-la. O mármore estava em bruto e nada indiciava que pudesse conter tamanha beleza, tamanho segredo. As primeiras pancadas fizeram-lhe tremer as mãos. A pedra era dura e ia obrigar a redobrado esforço. Nada o faria vacilar, afinal ele queria vê-la, senti-la.

Afastou-se um pouco para perceber a forma que dali brotava. Ali estavam os dois, pedra e escultor num descanso próprio de quem se estuda. Num gesto ameaçador ele avançou para o mármore e saltou para cima dele. Os veios da pedra pareciam latejar sob as suas botas gastas. Pediam-lhe luta, que a dominasse, que a tomasse sem pudor ou hesitação.

Num impulso impensado martelou a pedra com um golpe certeiro e sentiu-a ceder de mansinho. O rasgo quebrara a pedra em duas. O pedaço menor deslizou do topo e foi estilhaçar-se no chão; no impacto o apêndice explodiu em pequenos fragmentos que coloriram o chão com um pó branco. Para evitar a queda, ele saltou para o solo num reflexo felino. Nas costas, uma lágrima de suor escorreu para lhe lembrar que tudo tem um preço.

Não iria desistir. Não agora que a pedra ganhava forma. O cinzel voava freneticamente nas mãos inspiradas por um sonho, vê-la ali! E a pedra ia deixando cair o casulo para despertar a crisálida. As mãos, essas, doíam-lhe de tanto moldar. Sentia agora o exercício em slow motion; a dor acompanhava o cinzel em movimentos circulares que caiam sobre a pedra. E no movimento de regresso a dor tornava reforçada, como se a pedra a alimentasse num grito desflorado.

Parou, olhou-a novamente. O cinzel escorregou-lhe da mão e ao cair no chão deu duas piruetas que ele acompanhou com os olhos meio absortos. Não podia ser, não fora ele que fizera tamanha beleza. Ela, nua e alva, enfrentava-o deitada sobre um dos lados, como se tivesse estado sempre ali à sua espera. A mão dele acompanhou-lhe o perfil e o frio da pedra apertou-lhe o peito no desejo de mais vida, como se implorasse por alma.

As roupas caiam agora desordenadas ao seu lado. Ambos nus, ambos crus. Abraçou-a e deitando-se ao seu lado colocou-lhe uma perna por cima como se a pudesse ter mais assim. Os lábios dele procuravam agora os que criara. E assim ficou num torpor enamorado.

Fechou os olhos e sentiu, o coração que batia não era o seu. Abriu os olhos; não, não podia ser! Os olhos não lhe obedeciam, estavam selados e não abriam. Tentou afastar-se, mas não, os corpos estavam cravados. Um arrepio percorreu-lhe o corpo, sentia a força dela a aprisioná-lo. A emoção deu lugar ao medo, e se a quis não a queria agora mais.

Abriram a luz. A profundidade do atelier era recortada por sombras que o pequeno candeeiro não conseguia alcançar. Ela olhou a obra; meses de trabalho que as mãos não enganavam. Avançou e destapou a escultura coberta por um velho lençol. Ali estavam os amantes, tal e qual como os imaginara.


3 comentários:

Anónimo disse...

Adorei este post!!...poupo-te as explicações...é fabuloso!
Sou uma das que por aqui passa e não comenta...hoje tinha isto para dizer...a minha opnião,vale o que vale!
Gosto do que escreves,pôe muita gente a mexer-se,deste lado,é porque é bom,concorde-se ou não!
Gosto do estilo,divirto-me até com esse lado provocador de machão latino...acho-te um tipo com humor inteligente,como é que achas que alguns se" picam"...ou serão algumas?bem,bem,não sou de cá...inté!
Ana Marta

mjm disse...

Vai deixar de te apetecer escrever coisas destas ?!

Anónimo disse...

hum.................bastante sensual............................com muita imagem mental................................
acaba por ser um bocado aquilo que, mesmo que nao digamos, procuramos, numa especie de metafora, dakeles k nos rodeiam....embora secretamente, keriamos k eles estivessem ali, como estatuas, e que os pudessemos moldar um bocadinho do modo que queremos, e asSim pudessemos agarrar-nos mais a eles.....
gostei MESMO!
*****klau