sexta-feira, dezembro 10, 2004

Homens na cidade - 3

(posts prévios: HNC1, HNC2)

Estavam agora frente-a-frente. Rui, mais distante, perdia-se nas memórias do início. Como era estranho admitir que não restava mácula e, contudo, traíra um amigo. Olhou-a demoradamente como se um dedo seu percorresse um corpo por demais conhecido. Ela, num movimento estudado, levanta a cabeça e diz-lhe “É isto que queres?”. Na mão a folha aparecia agora amarrotada, o poema ferira-lhe a alma. Os olhos humedecidos denunciaram o desgosto, ela amava-o.

Rui mirou o lago. O reflexo da São perdia-se na pequena ondulação que a brisa provocava. Curioso, pensou, esta imagem difusa era o retrato mais fiel da amante. O Pedro, esse, nunca a iria conhecer assim. O namoro ia longo, os nove anos só podiam justificar a indecisão em assumir algo que nunca poderia resultar. A São sabia-o, o Pedro não.

A São era o reflexo e o reflexo era a São. Agora ficara tudo mais claro. Olhou para o seu próprio reflexo que teimava em acompanhar cadenciado o da amante. Num movimento brusco lançou o braço na água e com a mão espalhou o seu reflexo no dela. Ironia, passada a turbulência do gesto os reflexos regressaram afastados a provar que o desejo não venceria as leis da física.

“Assim não!” e, enquanto o dizia, tocou-lhe os lábios com a mão molhada a clamar por silêncio. Levantou-se e caminhou vigorosamente para o carro. Olhou para trás; a São já não estava lá e o reflexo também não.

Entrou no carro e deixou-se afundar no banco de cabedal. Iria jantar com os amigos, só isso lhe levantaria a moral. O Pedro estaria lá, e ainda bem. Agora sim, poderia olhá-lo de frente.

(a continuar)


Reflexo ... Pedro?

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