domingo, dezembro 28, 2003

Sapatos de Pai

Cheguei ao Nepal numa viagem com demasiadas escalas para serem contadas. Aproveitei as promoções last minute para evitar sobrecarregar os patrocínios já de si escassos. Preparei-me dois anos para este desafio, certamente o maior por que passarei.
Saí do bimotor e ao sentir o vento frio a acariciar-me a cara não pude deixar de sorrir. Estava ali, conseguira! Só eu sabia os sacrifícios, as dores, o treino intenso que suportara voluntariamente para que o meu físico estivesse à altura do repto que me impusera. Nunca me sentira tão bem, tão cheio de mim.
O nome Anapurna é mágico; mulher feiticeira dificilmente se deixará conquistar. O masculino, Katmandu, oferece um labirinto de ruelas estreitas como se quisesse reter o calor que emana das casas. Todos os meus poros respiravam esta atmosfera mágica; dei por mim a assobiar por nada, estava feliz.
Passaram-se quatro dias na preparação da escalada e na recuperação do jetlag. A caminhada foi pacífica até ao sopé da montanha. A partir daqui as dificuldades iriam surgir, eu sabia-o.
Estava eu sentado junto a um tanque de água quando um monge budista se aproximou. Retirou um cantil por entre o vestuário laranja e mergulhou-o no tanque. A minha cara de espanto deve tê-lo despertado; olhou-me com um sorriso. “A água é potável” disse-me no melhor inglês de Oxford sem perder o sorriso.
Conversámos bastante. Sou bom fisionomista mas inicialmente não lhe reconheci os traços ocidentais, a cabeça rapada também não ajudara. Este inglês já estava há 15 anos no Nepal e vivia de facto despojado dos confortos mundanos. A sua voz pausada combinava com o cenário, era tudo encantamento. Na despedida perguntou-me “Porque sobes a montanha?” e eu, procurando parecer profundo e eloquente, disparei a máxima recorrente “Porque está aí!”. Ele sorriu novamente e disse-me “Não, tu sobes a montanha porque a podes subir”. Esta frase iria acompanhar-me em toda a minha escalada. Ao fim do terceiro dia percebi que tinha calçado os sapatos do meu Pai.

Anapurna em segundo plano; cedo passaria a primeiro!

Tenho de agradecer ao Barnabé a ideia das colagens; amanhã colocarei "Onde pára o Exacto ..."
Há ficções do Diabo!

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