O Carocha circulava por entre os plátanos que emparedavam a estrada. A noite mostrava aqui e ali as estrelas que resistiam à noite de luar. Passaram os portões escaqueirados e o caminho levou-os à casa rodeada por um relvado algo descuidado. Numa das alas do jardim um chorão e alguns carvalhos projectavam sombras no relvado subindo, algumas delas, as paredes de pedra da casa centenária em desenhos erráticos.
Entraram e subiram para o quarto sem a pressa que denotasse o ânimo que os movia. A divisão era ampla, demasiado ampla, onde o pé-direito elevado se impunha à decoração minimalista.
Uma parede estava completamente coberta por uma tela que ambos pintaram. Na metade dela surgia uma caixa aberta de onde caíam algumas folhas desordenadas. Uma ampulheta jazia quebrada por cima delas deixando a areia fina escorrer até ao soalho. Por cima, um céu invulgar projectava cores alegres num movimento inquieto. No canto direito, junto ao que ele pintara, uma for de lótus pendia sobre uma mala de cartão. O cadeado apresentava uma ranhura em forma de interrogação embora, se se atendesse ao detalhe, se vislumbrasse um sorriso.
As cores dele eram mais escuras, mais pausadas, mas não sem vigor. Um tronco atlético suspendia-se num trapézio já no limite da imponderabilidade. Um dos braços rasgava o céu dela tocando ao de leve o sol com o indicador, num gesto que indiciava cumplicidade mas que se negava a prendê-lo. Da outra mão, firmemente agarrada ao trapézio, caía uma margarida. Por baixo, num parapeito de uma janela aberta, esperava-a uma pequena caixa aberta onde se podia ler C.P. Três livros caídos lateralmente, uns sobre os outros, completavam o parapeito. Num deles sobressaía um marcador onde se podia ler distintamente a palavra “lógica”. Mais abaixo, um instrumento invulgar em madeira colmatava o quadro. Percebiam-se as roldanas, as articulações em ferro forjado, mas não a função.
A portada aberta da varanda deixava entrar a luz ténue do luar. Não precisariam de mais. Sentaram-se no soalho e ela agarrou um livro que andava a ler há pouco. Olharam-se firmemente. Ela abriu o livro e, inesperadamente, rasgou com zelo uma das folhas. Dobrou-a com todo o cuidado até a folha não ser mais do que um pequeno quadrado de papel. Agarrou no braço dele e abrindo-lhe a mão disse-lhe, “está tudo aqui…”. Ele cerrou o punho e afirmou, “nunca o vou ler”. Sorriram num olhar que dispensava palavras.
“Eu também tenho uma surpresa para ti…”, ela franziu a testa como se esperasse dele essa provocação. Subiram ao sótão, um lugar só deles, iluminado por uma pequena clarabóia. Ela acercou-se da luz que dali emanava. O rosto cobriu-se de um branco pálido, a desilusão de não vislumbrar algo que procurava.
“O que se passa?”, perguntou-lhe ele num tom indeciso. “Não vejo a lua… era essa a surpresa?”. Ele, sem responder, deitou-se no soalho colocando a cara onde os raios terminavam. Ela debruçou-se sobre ele e, perante o espanto, caiu ajoelhada. Os olhos dele, de um mel esverdeado, eram agora pretos, profundamente pretos. Aproximou-se lentamente da cara dele. Agora tudo era mais nítido; nos olhos cintilavam as estrelas que os raios transportavam, nunca vira um céu assim. Na extremidade de um deles veio o espanto, conseguia ver a lua. E no deslumbramento de a contemplar, a lua soltou-se e escorreu pela face dele. Num movimento delicado apanhou a lágrima com um dedo. Pegou na mão ainda cerrada dele e depositou a gota no quadradinho de papel. Sorriu como uma criança e disse-lhe, “agora já o podes ler!”.
8 comentários:
Olá, menino João... Há quanto tempo!!
Um beijinho... :)*
..salpicas a alma..o misterioso papel é somente um adereço que a tua sensibilidade veste!..
Olá, João!
Interessante o texto, muito rico em termos de adjectivação e denotando a tua grande arte na área da ficção.
Um grande abraço e bom Domingo!
O que mais me chama a atenção e a emoção passada e os detalhes. Cada detalhe narrado.
Um dos melhores que já li de ti! Sem dúvidas! ;)
A portada aberta da varanda deixava entrar a luz ténue do luar .... faz lembrar ....
Mais uma surpresa deslumbrante, este texto:-)
A parede pintada? Vi-me a obsevar um misto de Dali com Magrite, não me perguntem a razão...
Salpicos dolorosos para quem finge ter alma. Estas palavras só fazem lembrar dor para quem sabe que perdeu algo que nunca mereceu...
Jinho João, maravilhoso texto!
amiga teatro: é verdade, estive 3 meses sem escrever. Na verdade, em 2 anos de escrita houve 2 interregnos, 8 meses no total. Para escrever é preciso tempo e vontade! És bem-vinda!
Beijinho
clepsidra: um papel temperado é receita que retira qualquer receio. Sem tabús nem cartas escondidas! A vida não é um jogo! :)
a.j.faria: como me compreendes António. Há quem diga que a ficção ultrapassa a realidade! Quem sou eu para o contradizer?
Abraço
thiago: não te percas nos detalhes; a mensagem é simples, não tem mistério maior do que um papel...
Obrigado pelo exagero! Abraço
anónimo/a: deve fazer lembrar muita coisa; a leitura tem essa virtude, cada um sente-a à sua maneira. Essa interpretação deixo-a aos leitores, longe de mim tal desejo!
cerejinha: tu e a tua mana, que herdaram da mãe a arte da pintura, podem arriscar fazer melhor! É bom ver uma amiga a elogiar-nos, melhor ainda é acreditar! És uma exagerada! :D
Beijinhos
Vera: minha amiga, pelo contrário, se releres verás que neste texto não há dor, mas sim deslumbramento. Sabes, porque me conheces, que sou pessoa demasiado alegre para entristecer os outros.
Mas se leste dor, espero que não a sintas, essa nunca jogaria com uma mulher apaixonada! Para os dois o meu carinho mais profundo; há amigas, mas tu transcendes-te!
Beijinhos
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