Sentei-me. Ajustei o banco à altura do teclado. Senti a rosca na mão que buscara para fixar a posição. Dei-lhe uma volta firme até já não sentir ceder, estaria fixa assim. Endireitei-me à procura da melhor colocação; não muito à frente, bastava que os pés tocassem os pedais. Estiquei agora os braços num último acto de preguiça antes de me acercar do móbil. As mãos inertes pendiam já sobre o teclado, como se os dedos soubessem há muito que iriam fecundar aquelas teclas alvas e negras. Elas, quedas, esperavam apenas a provocação das longas e estridentes cordas que fariam estremecer.
Não seria a primeira vez, mas as mãos não escondiam o ligeiro tremor que o percorria. Fora sempre assim, houvesse público e o momento não seria seu. Fechou os olhos e languidamente deixou cair as falangetas sobre o marfim. Não se abateriam todas em simultâneo; o silêncio foi recortado pelo ritmo ocasional das batidas secas nas teclas. Ouviram-se ao longe as tosses de quem se preparava para guardar sossego. Entreabri os olhos para me certificar do território. Não esbocei qualquer movimento, ninguém se apercebera da minha devassa.
Sem esperar pelo tempo, nem mesmo por mim, ataquei violentamente o piano. A comoção atravessou num ápice toda a plateia, ninguém respirou. As notas tomaram conta de tudo e de todos, arrumaram-se numa harmonia que me comandava o ímpeto, ora agressivo ora deslumbrado. O corpo deixou-se levar no ritmo oposto ao da cabeça, essa flutuava comovida como batuta certeira das mãos voadoras. E o sentimento em crescendo soçobrou de repente, como se a adolescência encontrasse a razão e da melodia ficasse somente um grito. O entusiasmo transformou-se num murmúrio de notas que magoavam a alma sem mais nem porquê, e um suspiro invadiu os presentes que da alegria procuravam agora esconder a comoção. Eu sorria triste, como se soubesse que o fim era já ali, atrás da página que ameaçava fechar a pauta.
As mãos escorregaram do teclado vindo a encostar-se num movimento redondo aos pés do banco. Tive três segundos só para mim, o tempo dos outros se recomporem e reagirem em simpatia. Os aplausos não foram poupados.
Ela levantou-se, curvou-se em respeito e pôde vê-los no correr da plateia iluminada. Caíam flores sobre o palco. Os rostos não enganavam, o público emocionado estava rendido à diva. Só ela sabia que fora eu que lhe preenchi a alma, agora sim, teria tempo para os outros.
Sem comentários:
Enviar um comentário