sábado, junho 25, 2005

Ensaio sobre o abismo

Camaradas e amigos

Escrevo-vos com contida emoção, na certeza porém que não poderia deixar perdurar o equívoco durante mais tempo. O Inferno existe! Posso testemunhá-lo de há uns dias para cá, não antes, embora os sinais fossem evidentes.
Acabara eu de abandonar esse mundo viciado pelo capital e pelos interesses dos grandes latifundiários, camaradas, e sou surpreendido pela recepção calorosa que me fez o grande Estaline. Nada demais para quem fala russo, mas não consegui evitar três beijos e um linguado na boa tradição comunista. Ainda mal refeito do insólito, e desejando que tudo fosse resultado dos efeitos secundários da medicação, sou surpreendido pelo Salazar que me estende a mão. Camaradas, só aí percebi que estava morto. Recusei-lhe a mão, claro está, e disse-lhe que o tinha combatido na clandestinidade, no aljube e em consciência. Ele olhou-me nos olhos, sim agora eu posso ver, e disse-me:

Salazar: “Como morreu o senhor?”
Eu: “De paragem cardíaca...”
Salazar: “... qual era o seu cargo, era a isso a que me referia?”
Eu.: “Militante comunista reformado!”
Salazar: “Ah! Eu morri como chefe de estado de um império, então o que o traz por cá?”
Estaline: “Ele é uma excepção Salazar, embora tenha falhado em vida, foi sempre solidário, sempre solidário...”
Eu: “Coerência, o sonho da ditadura do proletariado nunca se dissipou, nem mesmo quando as democracias socialistas ruíram face aos interesses capitalistas!”
Salazar: “Um dos nossos, sem dúvida!”
Estaline: “Brindemos a isso! Na zdorovia (1)!

Venho assim, camaradas, manifestar em carta a minha renúncia a todos os ideais comunistas, socialistas e estalinistas. A vida é uma merda, habituem-se!

Álvaro Cunhal
(Protestante por convicção)



(1) Cheers!

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