quinta-feira, setembro 08, 2005

Sentir-me em ti

Fui hoje ao hospital e encontrei este texto perdido, de tão extraordinário não resisti a publicá-lo.


Levei a mão à testa para confirmar. Claro, o calor e agora o suor, mais uma gripe estival. Procurei o interruptor; que chatice, estava sempre onde não devia estar. A luz irrompeu de pronto e no meio do clarão adivinhei a gaveta, mesmo ali, guardiã de remédios sábios e de outros menos estudados. A caixa azul surgiu no meio de outras tantas, todas usadas, todas testadas. Senti uma dor forte como se a garganta se fechasse para o negar. Bastou-me um golo mais, agora sim, bastava esperar. Fechei a luz automaticamente e deixei a mão agarrada ao interruptor, como se na escuridão precisasse de uma segurança disponível que se mostrasse lesta aos meus medos.

O turbilhão aproximou-se do tecto, sim, recordo-me bem. Primeiro foi a cama e logo depois senti-me também eu a rodopiar. A força que me empurrava para baixo era tremenda, assustadoramente decidida, não a conseguia estancar e quando me preparava para iluminar o pesadelo senti o interruptor a saltar-me da mão. Todo eu rodava numa dança sem parceiro, e num movimento só projectei-me no centro da tempestade, a queda superou a vertigem, sempre, sempre em queda, sempre, a queda...

A pancada seca acordou-me, sentia-me dorido mas diferente, incrivelmente diferente. A dor não era desconfortável, parecia que era esperada e agora eu aceitava-a. Recordei a queda que dei em menino, no susto que os meus pais apanharam quando me viram todo arranhado. Um filho único tem atenções que nem mesmo ele percebe.

A dor corria agora do peito até às coxas, sim, seria o tronco o mais afectado. Procurei a dor com a mão tacteando primeiro o peito. Um arrepio percorreu-me a coluna, só poderia ser sonho, delirava. As mãos torneavam uns seios perfeitos, demasiado perfeitos para serem reais . Sonhava portanto e descansei com a evidência. Sorri, iria tirar partido da aberração, seria mulher por um sonho apenas, como seria fácil percebê-las, sentir onde elas sentem, pensar como elas pensam; fantástico, iria conhecer a outra margem sem medo, sem juízos ou acusações.

Continuei a percorrer o peito, primeiro à descoberta e depois com mais determinação. E se primeiro tacteava, usava agora as mãos para acariciar o que só antes imaginara. O ardor aumentava com movimentos mais ousados, sentia o corpo a pedir domínio; o peito, esse, latejava à medida que os dedos comprimiam os pequenos mamilos que em resposta imediata se erguiam determinados à procura de mais, no desejo de tudo. Deixei uma mão no peito e lancei a outra à descoberta do que me faltava, sentir-me completa, mulher.

O estômago era perfeito, os abdominais desenhavam aí diagonais salientes e simétricas . Os dedos mal tocavam a pele, só sobrava o arrepio. Parei, senti um tufo em que me emaranhava e que me pedia força e o contrário. Pressionei, apoiei a mão e deixei-a comprimir numa sequência ritmada pelo desejo. Qual cobra que muda de pele, um dos dedos libertou-se para descer mais ainda, a descoberta estava por consumar.
Arqueei o corpo, primeiro por estranhar o toque, depois pelo fogo que me percorreu de imediato como nunca tinha experimentado. Senti a boca ácida, a respiração mudara e o corpo estava agora mais quente. A vontade era muita, não queria parar e aquele dedo não iria falhar.

A vertigem voltava no meio do desejo e do prazer. O turbilhão era agora mais violento e empurrava-me para cima. Levitei como um pião que salta do chão para ganhar velocidade. "Consegue ouvir-me, Pedro?". As palavras soavam longe mas aproximavam-se vertiginosamente.

"Pedro, correu tudo bem!". Uma mão segurava a minha, sem dúvida uma mão amiga pelo cuidado com que me agarrava. Entreabri os olhos e antevi silhuetas conhecidas na luz que agora conquistava. Primeiro a mãe, depois o pai. Ambos sorriam, não muito é certo, um sorriso sofrido mas solidário. "O que correu bem?", perguntei. Um homem de bata branca aproximou-se e, colocando uma mão no meu ombro, tranquilizou-me, "Tudo, Pedro, tudo! Agora já lhe podem chamar Ana, parabéns!"



Estou como o bebé, pasmo!


Nota: Um post polémico obriga a comentários mordazes!

9 comentários:

João Mãos de Tesoura disse...

Este foi seguramente o texto mais difícil que escrevi. Sou heterossexual o que me cria algumas inibições e limitações para abordar este tema.
Quem lançará a primeira pedra?

Cerejinha disse...

Assunto polémico sem dúvida. Ainda há pouco tempo me contaram a história de um Eduardo que se quis tornar Eduarda e depois de muitos anos de sofrimento, "aprisionadA" em corpo de homem submeteu-se a todas as transformações necessárias para concretizar o seu desejo. Não é que depois do processo todo concluido se arrependeu???????

Vá-se lá perceber o ser humano! E ainda dizem que as mulheres é que são complicadas.

;-)

Thiago Forrest Gump disse...

Se nesse aí bater também o arrependimento, nada que uma injeção king e um supositório de óleo de fígado de bacalhau não resolva!

Anónimo disse...

Cada qual deve seguir o coração e fazer as mudanças que achar mais correctas e que o tornem mais feliz. Pessoalmente ainda bem que não tenho esse tipo de problemas ou será que tenho? Não, decidamente não! Compreendo porque dizes que deve ter sido um texto difícil de escrever! Continua com os bons textos que a malta adora passar por aqui e ler!
:)

Principessa disse...

para alguém com inibições como dizes, não estiveste nada mal. Gostei muito (para variar um bocadinho!), ah e especialmente do nome! :) a personagem deve ser 1 bom rapaz, ou devo dizer, rapariga?

João Mãos de Tesoura disse...

cerejinha: bastam-me as minhas complicações do dia-a-dia! Respeito as decisões de cada um, mas que não as compreendo por vezes, não!

ilegal natural: tomates? sempre tive desde que me conheço!

thiago: ele ainda se habituava e era uma chatice! LOL

Mãos de Fada ou será de bruxinha: todos nós mudamos, mas tanto... não!!! Abraços à malta!

principessa: sempre assumi este blogue como eclético. Não falo da minha proficiência que não a tenho, falo só de ser um espaço aberto ao debate, ao contraditório. Quanto ao nome, se for o teu será bonito certamente. :)

luna: quem sou eu para dizer o que quer que seja? Abordei o tema, nada mais, as análises são vossas. Contudo, não sei o que é uma experiência com o mesmo sexo; só gosto de mulheres, se calhar é defeito! ;)

Thiago Forrest Gump disse...

Lembro-me do ditado: "nunca julgue um livro pela capa". :D

João Mãos de Tesoura disse...

thiago: pelas estantes que vejo alguns devem avaliá-los pela contracapa.

luna: não é o fétiche dos homens, é a verdade dos árabes... tão incompreendidos! :D

Anónimo disse...

Extraordinariamente bem escrito, bem pensado, ainda melhor trabalhado e pronto para ser apreciado. Simplesmente, delicioso.
Eu só imaginei um título,podia ser outro qualquer, ele deu-lhe corpo em 15 minutos! Excelente!
(Tu não sabes, mas foi inspiração egípcia)